publicada pela EDIPUCRS - 2008 / Máximo Daniel Lamela Adó
Apresentação
PENSAR APESAR DA RACIONALIDADE INSTRUMENTAL
Ricardo Timm de Souza
A suprema ironia da razão ocidental hegemônica talvez não tenha sido apenas, como bem mostram Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento, trair suas intenções ao se inverter em seu contrário, ao se tornar exatamente aquilo que pretendia exorcizar: um mito. Talvez a suprema ironia dessa razão triste e solitária que povoa quase todos os campos do imaginário social, das lógicas cinzentas que sustentam racionalidades estratégicas privadas, as lógicas da guerra, tenha sido – e esteja sendo – ter de elaborar contínuas artimanhas de impostura – que seriam cômicas, trágicas não fossem – para permanecer no lugar e posição que a muito custo conquistou: o não-pensamento, a obliteração do argumento, travestido em pensamento, nisso gastando boa parte de suas energias. Cada nova geração de estudantes inquietos, de intelectuais sinceros em sua busca para além do status quo, significa um desafio renovado ao não-pensamento, ou seja – numa igualmente renovada evocação a Adorno –, à pretensão de verdade que, pelo assomar de dimensões do real à visibilidade da cultura, autodenuncia-se como fraude, uma comédia mal escrita de contornos trágicos. Que essa seja a razão dominante hoje, ninguém duvida em sã consciência, pois ninguém está realmente a salvo dos tentáculos do calculismo que a caracteriza e que consiste em transformar continuamente qualidade em quantidade, diferença em indiferença, alteridade em mesmidade. Hordas de funcionários bem-pagos do pensamento instrumental, paladinos da razão opaca, títeres da violência, investem seu tempo e seus imensos recursos em contínuos e pertinazes esforços de justificação de tais mecanismos mentais que transformam o mundo num gigantesco juízo analítico, num incomensurável – em todos os sentidos dessa palavra – campo de consumo e indiferença; porém, são instados a renovar continuamente suas estratégias, numa criatividade delirante sem fim, pois o questionamento congênito da realidade – a temporalidade que nos constitui como humanos – não abdica de si mesmo, pois não abdica da vida. Pode não estar visível por algum tempo, soterrada pelas produções da indústria cultural, recalcadas pela perversão tornada regra; mas não desaparece, recorrente em seu nascimento. Pois, se é verdade que cada criança que nasce traz a mensagem explícita e inequívoca de que o tempo não acabou, cada questão que surge no cérebro de um jovem inquieto que se pergunta como é possível que o insuportável seja apresentado como suportável, que se pergunta qual a racionalidade que justifica essa metamorfose mental ofensiva à mais elementar sensibilidade filosófica, traz a mensagem que a filosofia ainda não chegou aonde deve, a saber, onde nenhuma evidência seja legitimada sem que as razões da legitimação sejam tanto plenamente captáveis como argumentativamente defensáveis e enraizadas no real, ou seja, na vida, e não em alguma de suas representações ou conceitos. Pois é, finalmente, da crítica da representação que se trata; em uma era em que o irrepresentável é mais real do que qualquer figuração que dele se faça – a “era das catástrofes”1 –, a tarefa do pensador é o estabelecimento de uma cuidadosa arqueologia do estado de coisas presente, para além das seduções da mera presença. Sem isso, o futuro está interditado.
A literatura oferece possibilidades infinitas de reencontro com o real; a filosofia, ansiosa por sinceridade, tem nela valiosíssima aliada. A articulação desses dois universos, todavia, é delicada; pressupõe uma sensibilidade capaz de suportar a autoconfiguração de linguagem que surge dessa espécie inusual de aproximação. TONALIDADES AFETIVAS NA DRAMATURGIA EXISTENCIAL DE EL ASTILLERO, DE JUAN CARLOS ONETTI, de Máximo Lamela Adó, apresenta-se como um exemplo criativo e profícuo de uma tal proposta de construção textual. Sem desnaturar a letra onettiana, sem se deixar seduzir por alguma pretensa auto-referência do pensamento filosófico heideggeriano antes de e por Onetti, Máximo nos convida a sentir atmosferas, a reencontrar na linguagem intertextual a linguagem de sua própria autoria; a autoria que sintetiza, na criação de um sentido próprio, a propriedade da criação para além da tautologia.
Se os limites da razão instrumental são explícitos nela mesma, a criação de linguagem potente, por sua vez, é um dos maiores antídotos contra o veneno destilado pela totalidade amorfa da razão opaca. Se uma obra nos afeta para além dos recursos da sintaxe, este é um indício forte de sua pertinência. A real tarefa de pensar não foi traída em TONALIDADES AFETIVAS NA DRAMATURGIA EXISTENCIAL DE EL ASTILLERO, DE JUAN CARLOS ONETTI. Que a obra encontre sem tardar leitores com o mesmo espírito.
Porto Alegre, 18 de julho de 2008.
1 Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A história como trauma”, in: NESTROWSKY, Arthur - SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.), Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000.
Disponível em: http://www.pucrs.br/edipucrs/tonalidades.pdf
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