A dança infinita do corpo-pensamento
Letícia Testa
E o corpo, que é o que é, eis que não pode mais se conter na extensão! – Onde ficar? – Onde mudar? – Essa Unidade aspira ao papel do Todo. Quer representar a universalidade da alma! Quer remediar sua identidade pelo número de seus atos! Sendo coisa, explode em acontecimentos! – Exalta-se! – E como o pensamento excitado toca em toda substância, vibra entre os tempos e os instantes, atravessa todas as diferenças; e como em nosso espírito se formam simetricamente as hipóteses, e como os possíveis se ordenam e se enumeram – esse corpo exercita-se em todas as suas partes, e se combina consigo mesmo, e dá forma depois de forma, e sai sem cessar de si!
(Paul Valéry, A ALMA E A DANÇA).
(Paul Valéry, A ALMA E A DANÇA).
Antes de adentrarmos no conteúdo do texto, considero importante a seguinte ressalva, embora saibamos - atinente à história do pensamento filosófico ocidental - que o conceito não mais proclama uma representação verdadeira ou uma determinação, mas dá-se apenas enquanto uma indicação, e, por isso, é já portador de efemeridade e de não fixidez, disso não decorre que a arte contemporânea não possa continuar sendo um índice transmissivo para o seu possível movimento. Assim, mesmo que o pensamento porte já a sua própria transitoriedade e efemeridade, a dança, tal como é pensada aqui, presta-se a ele como imagem de um movimento puro e impessoal. Isso ocorre, na medida em que a dança constitui-se enquanto o que não tem o seu sentido circunscrito a uma singularidade ou, ainda, como o que possui por trás de si um alguém que lhe possa, como algo externo, restringir.
Neste sentido, a dança, entendida como devir ou poder ativo, é imagem não só para o pensamento, mas também para si própria. Porém, a dança movimento puro, que aqui nos referiremos, é ainda oposta, por sua radical antecipação, ao pensamento discursivo e conceitual. Contudo, sendo também análoga a este em alguns aspectos fundamentais, a ela cumpre o papel de metaforizá-lo como indício de seu movimento possível, a despeito de, com isso, não ser o caso de tentar propor uma total dissolução do conceito no movimento da dança. Mas, simplesmente, considerar que, tanto o pensamento pode tomar como índice (mesmo que inalcançável) para a sua mobilidade a potência independente e liberada da dança, assim como esta, a partir dessa sua imagem, pode se assentar como tal. Por conseguinte, essa relação não significa de maneira alguma uma conciliação ou uma unidade entre o pensamento e o movimento dançante, ou, por outras palavras, que o pensamento não se diferencie do seu pensado. Diferentemente disso, o que buscaremos refletir aqui através dessa relação é que, aquilo que o pensamento indica fica evidenciado pela mostração, - mesmo que por breves aparições e efeitos - de um fundo inominável, inexpressivo, indistinguível, na imagem da dança. Então, a dança se faz como o que transmite a si e ao pensamento a sua potência infinita, e este, por sua vez, como o que incessantemente se move nas infinidades indicativas dessa potência. E, repetindo uma vez mais, a dança é imagem transmissiva, para o pensamente e para o que ela mesma seja, do movimento infinito.
Agora, exortados pelo pensamento de Alain Badiou, podemos nos perguntar de que maneira a dança, em detrimento da sua redução realizada na especificidade de alguma técnica, lança mão da universalidade de seu ser como possibilidade da arte. E, com isso, o quanto a amplitude de sua condição de metáfora para o pensamento pode ser tributária não apenas para este, mas, tornar-se-ia constitutiva de sua própria efetividade. Nesse sentido, poderíamos, já de antemão, arriscar um “como” para tal efetividade que não seria outra coisa senão a dança enquanto a retenção de si mesma.
Mas, ao que queremos nos referir quando dizemos que a dança, na sua condição universal de possibilidade da arte, mantém uma relação íntima com a retenção de si mesma, ou, mais claramente, com o seu im-poder ou privação de si?
Primeiramente, faz-se importante que explicitemos o que compreendemos por possibilidade da arte no que diz respeito à dança.
Segundo Badiou, “a dança não é uma arte porque é signo da possibilidade da arte tal como inscrita no corpo”. (2002: 94)
Desse modo, Badiou procura indicar que “[...] a dança é precisamente o que mostra que o corpo é capaz de arte, e a medida exata na qual, num determinado momento, ele é capaz de arte”. (2002: 94)
O que precisamente podemos entender, em um primeiro esforço em relação a isso, é que Badiou está atribuindo à dança um significado irrestrito, pela conseqüente instauração desta, enquanto possibilidade ilimitada do corpo como arte. E aqui, ater-nos às palavras do autor é fundamental. E ele ressalta que:
[...] dizer que o corpo é capaz de arte não quer dizer fazer uma “arte do corpo”. A dança aponta para essa capacidade artística do corpo, sem por isso definir uma arte singular. Dizer que o corpo, como corpo, é capaz de arte, é mostrá-lo como corpo-pensamento. Não como pensamento preso em um corpo, mas como corpo que é pensamento. (2002: 94)
Por outras palavras, reafirmamos a reflexão de Badiou ao dizer que a dança é a potência de um acontecimento infinito e, por isso, a invisibilidade que se faz visível na finitude do corpo. Todavia, isso nos leva a crer que para tanto, tal corpo não deve submetê-la ao adestramento de uma técnica em específico, mas, ao contrário, propiciar a cada vez que a dança seja, a partir dela mesma, a infinitude de suas possibilidades. A cada vez, sem impor um saber que lhe pré-exista, a dança se faz visível no corpo-pensamento. A dança, assim como o pensamento, e por esse motivo Badiou - através da analogia nietzschiana - a concebe como metáfora deste, deve acontecer livre de prescrições que invertam o seu sentido amplo e abissal de possibilidade da arte na delimitação de uma arte do corpo. A dança e o pensamento, então, constituem-se como a origem de sua própria mobilidade, que não se destaca de si ao expandir o seu próprio centro. E, neste sentido, são análogos por não serem uma conseqüência de algo que lhes é exterior, e sim por serem a intensificação de si – na compreensão nietzschiana – enquanto o que se desloca através de seu próprio desdobramento imanente. Ou seja, ambos são a mobilidade de sua própria intensificação. Essa intensidade do que se desdobra sobre si é, ao mesmo tempo, origem e princípio de sua mobilidade, só acontece mediante a liberação de qualquer controle externo. E isso significa dizer que impor um movimento, dar uma direção - desde fora - para aquilo que é por origem e princípio a própria mobilidade, resulta na obstrução do desdobramento de suas possibilidades, encaminhando-as ou restringindo-as a uma particularização. E, com isso, a intensificação de seus infinitos desdobramentos e possibilidades indecididas reduzir-se-iam ao hipostasiamento de uma escolha realizada.
Aqui chegamos ao ponto referido anteriormente, no qual a dança, como possibilidade da arte em seu modo de dar-se à maneira de um acontecimento aberto ou de um sempre ainda não, salvaguarda um permanente ainda porvir pela retenção de si ou pelo não cumprimento de sua realização. Dito isso, pode-se redizer que a dança é a imagem inscrita no corpo da manutenção, na efetividade de suas possibilidades, assim sendo, deve-se denominar tal capacidade de im-poder que pode a própria subtração, no seu modo mesmo atualizado. A dança pode o gesto da indeterminação conseqüente de sua subtração, que se desdobra incessantemente retida de uma decisão. Ou seja, toda atualização dançante comporta o não-atualizável de sua potência. Mantém-se ali, em toda atualização-potente, a abertura do que ainda não deveio ou do que não se atualiza a não ser em infinita fuga.
A dança metaforiza o pensamento ainda hesitante, antes de qualquer decisão, constituindo-se como símbolo de seu espaçamento infinito e indeciso dentre todas as possibilidades de um nome. A dança é acontecimento puro e livre de nomeação, é o esforço excitado por totalidade que revela o infinitamente antes, isto é, a sua própria retenção. Expiação do espaço de toda parcialidade de nome, que corta a totalidade fixando-a na superfície de dimensão linear, a dança é o que tende sempre mais, a cada não a si mesma um sim, à totalidade para qual se excita. Ela é a aparição do que ainda não foi ou a palavra detida, é a revelação de uma ausência ou “[...] a mostração permanente relativa ao que está acontecendo em sua fuga, na equivalência indecidida de seu ser e de seu nada”. (BADIOU, 2002: 92)
Por conseguinte, a dança é a inominável capacidade de indiferenciação entre o seu ser e o seu nada, a sua efetivação quer a vacuidade ou o espaçamento indistinto entre o gesto e o não-gesto, pois o modo de ser leve da dança, em oposição a todo “espírito de peso”, não marca lugar ou decide o acontecimento. Sua aparição retém a si própria de uma realização; precedendo, deste modo, toda aparência e toda manifestação expressiva, a favor da liberação de acontecer no surgimento puro do vir-a-ser de sua mobilidade indecidida. É essa relação da dança consigo mesma que é responsável por mantê-la, insistentemente, na abertura. Então, redizendo o dito, a dança só pode dançar o indiscernível em meio a suas infinitas possibilidades.
A dança, como diz Heidegger acerca do pensamento, deve ser um advir da abertura. E nesse sentido, já que pensar e ser são o mesmo, também o ser da dança deve ser destituído de um controle que a convoque pelo fechamento de uma concepção, tomando-a, apenas, como sendo uma de suas formas atualizada em uma interpretação. Pois a dança é, justamente, o que faz com que todo o seu sendo seja sempre ainda possível. Isto é, que a dança não se limita ou se reduz a uma determinada concepção ou interpretação que possa suscitar, mas, ao contrário disso, é o que faz fundo (na sua absoluta efemeridade e eterno desaparecimento) para toda e qualquer concepção ou interpretação a seu respeito.
Com isso, sugerimos - desde a analogia nietzschiana entre a dança e o pensamento – que a dança se faz em sintonia com a infinitude de seu ser ou de suas possibilidades. Pois é por essa relação consigo, que a dança, como a morada de todo movimento dançante possível, constitui-se como a aproximação intensiva de seu próprio ser, provendo a partir de si a sua insistente fuga ou ausência revelada. A dança é a estância do possível ou, melhor dito, ela dá-se como o espaçamento originário e invisível da mobilidade dançante, pelo desdobramento que produz o seu ser, para o qual todo movimento aponta. Isso significa que a dança é o princípio de onde provém o que a cada movimento não se deixa dizer apenas por ele mesmo, em função da recusa do que lhe faz fundo como a sua totalidade inalcançável. Todavia, todo movimento indicia e inaugura esse silêncio constitutivo do próprio mover. Portanto, ela é a aparição invisível e infinita que sustenta o aparecer do movimento na finitude do corpo visto.
Mas então, o que é preciso para que a dança se dê como essa invisibilidade que possibilita a sua própria infinitude no e pelo finito? Como a dança pode ser essa presença do seu desaparecimento, ou, ainda, ser enquanto a sua própria ausência?
Para isso é preciso, segundo Heidegger, que façamos a experiência do mais radical im-poder (Ohmacht). O que ele nomeia de serenidade, e que pode ser compreendida como uma passividade ou um abandono ao ser das coisas de maneira a deixar com que elas aconteçam conforme o seu próprio ser, e não de acordo com o nosso desejo e querer em relação a elas.
Alcançar a Serenidade implica despojar-se (sichloslassen) do pensamento representativo de estrutura transcendental renunciando ao querer (Wollen) que se refere ao horizonte. Esta renúncia já não procede de um querer, a menos que a incitação para caminhar em direção da pertença à Extensão aberta (Gegnet) necessite ainda de um último vestígio do querer, vestígio este que, todavia, se vai apagando ao longo desse caminhar e que desaparece completamente na Serenidade. (HEIDEGGER apud VILA-CHÃ, 1985: 68)
Logo, verificamos que se faz necessário que abdiquemos de nosso desejo de objetivação ou controle, restringindo o que quer que seja a coisa na nossa capacidade de poder dizê-la. Desse modo, não limitamos apenas a coisa, tomando-a pelo que se diz dela, mas também a nós mesmos a partir do momento que estabelecemos relação somente com um de seus modos capturado e realizado pelo nosso dizer em detrimento de suas indizíveis possibilidades. Renunciarmos a esse controle é ultrapassar a nossa finitude compreensiva admitindo o que a nós se oculta em todo dizer, e se nos apresenta na forma de infinito desaparecimento e ausência. Este abandono no im-poder (Ohmacht) é que nos libera da monotonia de uma experiência acabada e morta na determinação, e permite a aporia ativa da mobilidade.
A dança é a força impessoal, o neutro indistinguível a partir do qual todo movimento se diferencia. É o surgimento puro desde onde tudo o que vem depois dela se particulariza ou toma forma. Infinitamente aquém de todos os movimentos particulares, é a mobilidade liberada em sua infinitude. Ela é totalmente impessoal e pré-individual, surge indissociada de seu desaparecimento, e, em vista disso, é o acontecimento puro que não capturamos, mas que apenas acessamos no visto. Morada que acolhe toda diversidade na sua enigmática unidade, dá-se como vertiginosa diluição no eternamente antes, e oferece-se como imagem da pura mobilidade que provê a aparição do mundo pelo despojo de identidade ou de singularidade. A dança não comporta qualquer tipo de expressividade e, tampouco obedece a impulsos ou a êxtases selvagens e primitivos do corpo. E assim, desobedecendo a qualquer desejo, querer ou solicitação, a dança só pode ser a vertigem, a subtração e a retenção de si, que, na finitude do corpo, não cessa de verter o infinito.
Referências:
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo. Estação liberdade, 2002.
VILA-CHÃ, João. Efeitos de Heidegger: A propósito dos 60 anos de Sein und Zeit. Revista Portuguesa de Filosofia. Braga, v.20, n.4, p. 385-497, 1964.
PUBLICADO EM:
PUBLICADO EM:
Marafona : força criadora do desaparecimento.
Organizado por Máximo Daniel Lamela Adó, Letícia Testa, Nazareno Eduardo de Almeida.
Florianópolis : Núcleo de Ação Integrada - NAI, 2007.
123 p. . (Série dança e arte, tradução intersemiótica)
ISBN: 978-85-60893-00-3
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