Faz 74 anos da publicação do primeiro conto do     escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, e agora podemos lê-lo em     português. Foi em 1933, no jornal La prensa de Buenos Aires,     no período do chamado “impulso modernizante” da década de 1930, que     se publicou o conto Avenida de Mayo-Diagonal Norte-Avenida de     Mayo. Conto esse que foi um dos dez vencedores de um concurso     literário realizado em 1932 pelo mesmo jornal. 
O Brasil tem agora a oportunidade de ler, em     português, uma parte da produção literária do escritor. Em 2005,     foram publicados A vida breve e Junta-cadáveres, dois     de seus 12 romances, ambos pela editora Planeta do Brasil,     traduzidos, respectivamente, por Josely Vianna Baptista e Luís Reyes     Gil. E em março de 2007, foi publicado O estaleiro, pela     mesma editora. 
Hoje, além dos três romances, podemos ler os 47     contos, organizados cronologicamente por datas de publicação, todos     reunidos num só volume. É o clone brasileiro da edição     espanhola publicada pela editora Alfaguara, em janeiro de 1994.
Para tanto, não sou o único nem o primeiro a afirmar     que ler Juan Carlos Onetti significa predispor-se a algumas     dificuldades. Em primeiro lugar, a dificuldade de impor função e     gozo transcendente à literatura, dificuldade esta relacionada com a     nossa própria história de leitores. Ao ler Onetti e depararmos-nos     com um espaço nada diáfano, que é o espaço de sua literatura, somos     como que “obrigados” a retomar a história que possa nos contar a     história dessa história: a história da literatura e do leitor.    
Antonio Muñoz Molina ressalta, na introdução aos     Contos completos, que existe uma “idiota” superstição que afirma     que ler Onetti é difícil. O que acontece, diz Molina, é que lê-lo     “exige apenas o que a leitura sempre deveria exigir: uma atenção     incessante, um ensimesmamento que cancele qualquer outro ato, que     suprima o mundo exterior”, e completa: “A melhor ou a única maneira     de lê-lo é deitado na cama, com muito tempo pela frente, com     absoluta predisposição à solidão e à preguiça”. (MOLINA, 2006, p.11)
 Concordo com Molina na primeira acepção, pois     devemos estar familiarizados com uma certa “lógica” do texto     onettiano, ou seja, devemos adentrar em seu universo vertiginoso,     visto como incompleto em sua completude, por acolher, em sua forma,     seu estilo e conteúdo, uma concepção de mundo em que o compreender,     e, nesse caso, o ler e também o     filosofar não são uma mera ocupação,      mas o modo de ser/estar do homem. Nesse sentido, familiarizar-se com     o texto onettiano é familiarizar-se com uma concepção que entende o     ato de compreender como o ato de ler. E, nesse momento, ler é     ler-nos, ler nosso ato e aquilo que a escrita lida leva a ler em     nós. No entanto, para que isso ocorra, para que possamos     familiarizar-nos com uma concepção de mundo que contorne a atitude     de que ler é ocupar-se, no mesmo sentido que possa ter o termo     ocupação no entretenimento televisivo, devemos sim estar     predispostos à solidão e ao silêncio, e diria ainda, estar     predisposto a um certo “tédio” mas não à preguiça. Quando digo     “tédio”, estou me referindo a um “tempo longo” em que as     temporalizadas ocupações cotidianas não o tomam de assalto e assim,     nesse “tédio”, o ato de ler possa tornar-se um ato impessoal na     pessoalidade de ser com a leitura. Ou seja, manter-se numa zona de     não-conhecimento, num devir impessoal que não evoque um Eu     egocêntrico, mas nos dê a pertinência, sempre incompreensível, de um     Eu irresponsável frente a frente com o impessoal, vivendo a     intimidade do ser estranho que há em nós. 
Voltando ao tema da preguiça, não sejamos hipócritas,     ler não é hábito que possa entregar-se à preguiça. Devemos rever uma     certa concepção que imagina que ler seja um ato preguiçoso, a não     ser a leitura de certas revistas de comentários diversos que não     passam de mera ocupação. A palavra preguiça está associada à     indolência e ao desânimo. Não se pode entregar-se à leitura com     desânimo ou indolência.
O ato de ler, pelo contrário, exige a atenção     incessante, preconizada por Muñoz Molina, e para isso devemos     lembrar que toda atenção é concentração. Nesse sentido, devemos     estar dispostos. Dispostos para despertar e liberar a literatura ao     deixá-la ser no próprio ato de ler. Bem assim, a leitura ativa deve     acontecer num “tempo” não-temporalizado, pois suprimir o mundo     exterior, como diz Molina, a meu ver, quer dizer não temporalizar o     tempo. 
Temporalizar o tempo é determinar os instantes em     sucessões de agoras, num “tempo” outro que não o “tempo” vivido ou     temporalizado. São marcações “externas” que se submetem a outras     marcações “externas”.  Para temporalizar o tempo de uma leitura, é     necessário um outro tempo que o mensure e a sua vez é necessário     outro que mensure este, e outro, e outro e assim podemos regredir ao     infinito e, ao modo de O aleph do escritor argentino Jorge     Luís Borges, encontrar um “ponto” onde se possa vislumbrar o “tempo     real”. Nesse ponto se cruzam todos os tempos: passado, presente e     futuro. E esse ponto é o ponto que pode ser lido como o ponto     desmedido da eternidade. É o ponto de convergência em que se pode     conceber o ser com o existir no instante da acontecência.    
Para ler Onetti, e por extensão toda literatura, não     se deve temporalizar o tempo. É necessário admitir que não se tem     tempo, pois se está no tempo, e assim é ele, o tempo, que nos     possui. Contudo, em nosso modo de vida atual, impregnado pela     desvalorização da efemeridade do fazer cotidiano, pelo ritmo do     fast-food, a valorização do tempo “não-temporalizado”, do tempo     do existir apenas no ato daquilo que se faz é uma raridade.     
Daí a idéia de que ler a literatura onettiana é     difícil. De fato, como diz Molina, não é ler Onetti que é difícil, o     difícil é conceber que para ler devemos ter disposição, e disposição     é estar em tonalidade afetiva com o ato que nos dispomos. Isto é,     estar em uma afetividade positiva ao sermos o ato da leitura. O     difícil é conceder ao tempo um não-tempo no tempo, uma     não-mensurabilidade por determinações externas. Difícil é conceber     que ler e compreender são modos constitutivos do viver e não atos     externos ao ser.  Percebe-se assim que ler Onetti não é ler seguindo     a linearidade de uma escrita que se dá a ler em sucessões de agoras,     ler Onetti é deixar-se estar no tempo de sua leitura, ser     afetivamente tomado por ela.  
Após estarmos “familiarizados” com esse deslocamento     do modo tradicional de compreender o modo de ler e a leitura,     comprovamos a existência de outra dificuldade: a dificuldade de     abrigar, a partir das personagens onettianas, a idéia de que, nós     homens, somos um “a caminho”, “uma travessia”, uma  “indiscernibilidade”.     Aceitar que o homem é somente e sempre insistentemente possibilidade     enquanto possibilidade e nunca realização, compreender que o homem é     uma abertura que se esgarça no tempo. Como diz Eládio Linacero,     personagem de El pozo (O poço), romance ainda não traduzido     ao português: a vida “não é mais que o passar de frações de tempo,     uma e outra, como o ruído de um relógio, a água que corre, moeda que     se conta” (ONETTI, 1965, p.55, tradução nossa).
Ler Onetti é adentrar no universo imanente da     acrimônia da finitude, pois em sua literatura lemos que ser homem é     fim e não meio, indicando assim o sentido ontológico, em que a     “qualidade” de ser homem está no ato, no agir do estar-sendo, no     próprio existir e não em uma idealidade que quando alcançada doará     ao seu “apanhador” a dádiva da vida, a felicidade.
Como já mencionamos em        outro texto, a sua narrativa se configura por uma escrita em     rede que avança além das fronteiras de cada livro. O professor e     crítico argentino Roberto Ferro postula a possibilidade de ler a     literatura onettiana como um texto único, distinguindo continuidades     e descontinuidades a partir das relações entre eles, os textos. Quem     teve a oportunidade de ler A vida breve ou Junta-cadáveres,      reconhecerá, nos contos, espaços e personagens. Destacadamente, a     cidade de Santa María, importante cenário da literatura de Juan     Carlos Onetti, como sua praça, o bar Berna etc. Entre as     personagens, podemos fazer várias relações e constatações. No conto    Presencia, lemos a respeito de Jorge Malabia, agora mais     velho e não mais em Santa María cidade onde, em     Junta-cadáveres, protagoniza junto a outras personagens, como     Díaz Grey, Marcos Bergner, Julita, o velho Lanza, Barthè, a história     que gira em torno da instalação de um prostíbulo por Larsen,     o Junta-cadáveres, em Santa María. 
Malabia, em Presencia, vive em Madrid às     custas do dinheiro que lhe chega, da venda forçada, do jornal El     liberal de seu pai. Ali, exilado, vive como se estivesse     em Santa María. Convive com o sentimento de saudade por uma     mulher que se chama María José Lemos, e esse sentimento o faz     investir na sua procura, porém, ele a reencontra apenas nos relatos     do detetive contratado. Como remédio para o esquecimento, os relatos     do detetive lhe devolvem outra história de María José e assim ele     pode esquecê-la. No entanto, meses depois, Malabia lê em El     liberal uma nota sobre o desaparecimento de María José. A     história faz o leitor repetir-se histórias das ditaduras da     Latino-américa, María José Lemos é mais uma desaparecida.     
Em A casa na areia, uma vez mais a questão do     tempo e das suas relações com o existir se fazem presentes. Nesse     conto o conhecido médico da narrativa onettiana, Díaz Grey, em seu     ter tempo, no tédio cotidiano conferido no bar do hotel ou em seu     consultório, constata, segundo o narrador, que sua vida não passa de     lembranças. Lembranças que se lançam em um sentido por vezes     falsificado, elas, as lembranças, podem ser evocadas e corrigidas     para serem sustentadas com imprevistas invenções. Díaz Grey, como     numa aventura proustiana, pergunta-se sobre uma espécie de     circularidade do tempo, vê que o futuro é uma denominação para a     sombra de um passado. O começo anuncia o fim. Nessa sorte de     lembrança a que se confere um sentido variado, o leitor, cativo de     Onetti, poderá incorrer a associações e reinvenções cruzadas da     literatura onettiana. O conto, publicado no jornal La nación     de Buenos Aires em 1949, pressagia e “anuncia” o que vai acontecer     no romance Deixemos falar o vento (Dejemos hablar al     viento), publicado originalmente em 1979.  Nesse conto Díaz Grey     conhece Colorado, um piromaníaco, há nele, no conto, uma lenda de um     anel enterrado. Não é difícil que o leitor faça relações     metatextuais e associe a lenda do anel, o piromaníaco, o incêndio de     Santa María (que ocorre em Deixemos falar o vento), a     presença de uma personagem/testemunha (que aparece como num frame      cinematográfico no romance O estaleiro, no qual é um     frentista de posto de gasolina, ou seja, um fornecedor de material     inflamável) chamado Hagen a uma tetralogia de Wagner, a saber: “O     anel de Nibelungos [Der Ring des Nibelungen]”. Nessa tetralogia há a     ópera “O Crepúsculo dos deuses [Götterdämmerung]”, em que Hagen    incendeia Walhalla que fica à beira de um rio e, como a Santa     María onettiana, também é incendiada. 
Em Sabonete, lemos uma pequena história de     amor e respeito, em que o ignorar contém a potência do amar sem a     intolerância da razão. 
Temos então, 47 contos, que reunidos dão a vislumbrar     grande parte da tessitura de uma trama em que, sua pessoalidade, a     de uma certa literatura autoral que contém cada conto, dá a ler e se     completa, numa certa incompletude, ou seja, na intimidade com aquilo     que lhe é estranho, ou melhor, naquilo que lhe é próprio mas está     ausente de uma presença. Na pessoalidade impessoal em que a Sua     literatura, a de Onetti, passa a ser somente literatura, pois Seu     sentido, o da literatura, se dá pelo exterior-a-Si, num fluxo vital     de nunca ser, determinante e,     cadavericamente, uma obra, um autor, uma identidade fixa. Mas, uma     linha de fuga que transvaza toda e qualquer determinação; inclusive     a da temporalização do tempo.
MOLINA, Antônio Munõz. "Sonhos Realizados: Um convite aos contos de Juan Carlos Onetti".In.: 47 contos de     Juan Carlos Onetti.Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo:     Companhia das Letras, 2006.
ONETTI, Juan Carlos. 47 contos de     Juan Carlos Onetti.Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo:     Companhia das Letras, 2006.
__________. El     pozo. Montevideo: Arca, 1965.
publicado em REA - Revista Espaço  Acadêmico Nº 80 -  janeiro/2008 - ISSN 1519.6186  
 

 
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