quarta-feira, 5 de maio de 2010

47 Contos onettianos e o ato de Ser com a leitura

Faz 74 anos da publicação do primeiro conto do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, e agora podemos lê-lo em português. Foi em 1933, no jornal La prensa de Buenos Aires, no período do chamado “impulso modernizante” da década de 1930, que se publicou o conto Avenida de Mayo-Diagonal Norte-Avenida de Mayo. Conto esse que foi um dos dez vencedores de um concurso literário realizado em 1932 pelo mesmo jornal.
O Brasil tem agora a oportunidade de ler, em português, uma parte da produção literária do escritor. Em 2005, foram publicados A vida breve e Junta-cadáveres, dois de seus 12 romances, ambos pela editora Planeta do Brasil, traduzidos, respectivamente, por Josely Vianna Baptista e Luís Reyes Gil. E em março de 2007, foi publicado O estaleiro, pela mesma editora.
Hoje, além dos três romances, podemos ler os 47 contos, organizados cronologicamente por datas de publicação, todos reunidos num só volume. É o clone brasileiro da edição espanhola publicada pela editora Alfaguara, em janeiro de 1994.
Para tanto, não sou o único nem o primeiro a afirmar que ler Juan Carlos Onetti significa predispor-se a algumas dificuldades. Em primeiro lugar, a dificuldade de impor função e gozo transcendente à literatura, dificuldade esta relacionada com a nossa própria história de leitores. Ao ler Onetti e depararmos-nos com um espaço nada diáfano, que é o espaço de sua literatura, somos como que “obrigados” a retomar a história que possa nos contar a história dessa história: a história da literatura e do leitor.
Antonio Muñoz Molina ressalta, na introdução aos Contos completos, que existe uma “idiota” superstição que afirma que ler Onetti é difícil. O que acontece, diz Molina, é que lê-lo “exige apenas o que a leitura sempre deveria exigir: uma atenção incessante, um ensimesmamento que cancele qualquer outro ato, que suprima o mundo exterior”, e completa: “A melhor ou a única maneira de lê-lo é deitado na cama, com muito tempo pela frente, com absoluta predisposição à solidão e à preguiça”. (MOLINA, 2006, p.11)
 Concordo com Molina na primeira acepção, pois devemos estar familiarizados com uma certa “lógica” do texto onettiano, ou seja, devemos adentrar em seu universo vertiginoso, visto como incompleto em sua completude, por acolher, em sua forma, seu estilo e conteúdo, uma concepção de mundo em que o compreender, e, nesse caso, o ler e também o filosofar não são uma mera ocupação, mas o modo de ser/estar do homem. Nesse sentido, familiarizar-se com o texto onettiano é familiarizar-se com uma concepção que entende o ato de compreender como o ato de ler. E, nesse momento, ler é ler-nos, ler nosso ato e aquilo que a escrita lida leva a ler em nós. No entanto, para que isso ocorra, para que possamos familiarizar-nos com uma concepção de mundo que contorne a atitude de que ler é ocupar-se, no mesmo sentido que possa ter o termo ocupação no entretenimento televisivo, devemos sim estar predispostos à solidão e ao silêncio, e diria ainda, estar predisposto a um certo “tédio” mas não à preguiça. Quando digo “tédio”, estou me referindo a um “tempo longo” em que as temporalizadas ocupações cotidianas não o tomam de assalto e assim, nesse “tédio”, o ato de ler possa tornar-se um ato impessoal na pessoalidade de ser com a leitura. Ou seja, manter-se numa zona de não-conhecimento, num devir impessoal que não evoque um Eu egocêntrico, mas nos dê a pertinência, sempre incompreensível, de um Eu irresponsável frente a frente com o impessoal, vivendo a intimidade do ser estranho que há em nós.
Voltando ao tema da preguiça, não sejamos hipócritas, ler não é hábito que possa entregar-se à preguiça. Devemos rever uma certa concepção que imagina que ler seja um ato preguiçoso, a não ser a leitura de certas revistas de comentários diversos que não passam de mera ocupação. A palavra preguiça está associada à indolência e ao desânimo. Não se pode entregar-se à leitura com desânimo ou indolência.
O ato de ler, pelo contrário, exige a atenção incessante, preconizada por Muñoz Molina, e para isso devemos lembrar que toda atenção é concentração. Nesse sentido, devemos estar dispostos. Dispostos para despertar e liberar a literatura ao deixá-la ser no próprio ato de ler. Bem assim, a leitura ativa deve acontecer num “tempo” não-temporalizado, pois suprimir o mundo exterior, como diz Molina, a meu ver, quer dizer não temporalizar o tempo.
Temporalizar o tempo é determinar os instantes em sucessões de agoras, num “tempo” outro que não o “tempo” vivido ou temporalizado. São marcações “externas” que se submetem a outras marcações “externas”.  Para temporalizar o tempo de uma leitura, é necessário um outro tempo que o mensure e a sua vez é necessário outro que mensure este, e outro, e outro e assim podemos regredir ao infinito e, ao modo de O aleph do escritor argentino Jorge Luís Borges, encontrar um “ponto” onde se possa vislumbrar o “tempo real”. Nesse ponto se cruzam todos os tempos: passado, presente e futuro. E esse ponto é o ponto que pode ser lido como o ponto desmedido da eternidade. É o ponto de convergência em que se pode conceber o ser com o existir no instante da acontecência.
Para ler Onetti, e por extensão toda literatura, não se deve temporalizar o tempo. É necessário admitir que não se tem tempo, pois se está no tempo, e assim é ele, o tempo, que nos possui. Contudo, em nosso modo de vida atual, impregnado pela desvalorização da efemeridade do fazer cotidiano, pelo ritmo do fast-food, a valorização do tempo “não-temporalizado”, do tempo do existir apenas no ato daquilo que se faz é uma raridade.
Daí a idéia de que ler a literatura onettiana é difícil. De fato, como diz Molina, não é ler Onetti que é difícil, o difícil é conceber que para ler devemos ter disposição, e disposição é estar em tonalidade afetiva com o ato que nos dispomos. Isto é, estar em uma afetividade positiva ao sermos o ato da leitura. O difícil é conceder ao tempo um não-tempo no tempo, uma não-mensurabilidade por determinações externas. Difícil é conceber que ler e compreender são modos constitutivos do viver e não atos externos ao ser.  Percebe-se assim que ler Onetti não é ler seguindo a linearidade de uma escrita que se dá a ler em sucessões de agoras, ler Onetti é deixar-se estar no tempo de sua leitura, ser afetivamente tomado por ela. 
Após estarmos “familiarizados” com esse deslocamento do modo tradicional de compreender o modo de ler e a leitura, comprovamos a existência de outra dificuldade: a dificuldade de abrigar, a partir das personagens onettianas, a idéia de que, nós homens, somos um “a caminho”, “uma travessia”, uma “indiscernibilidade”. Aceitar que o homem é somente e sempre insistentemente possibilidade enquanto possibilidade e nunca realização, compreender que o homem é uma abertura que se esgarça no tempo. Como diz Eládio Linacero, personagem de El pozo (O poço), romance ainda não traduzido ao português: a vida “não é mais que o passar de frações de tempo, uma e outra, como o ruído de um relógio, a água que corre, moeda que se conta” (ONETTI, 1965, p.55, tradução nossa).
Ler Onetti é adentrar no universo imanente da acrimônia da finitude, pois em sua literatura lemos que ser homem é fim e não meio, indicando assim o sentido ontológico, em que a “qualidade” de ser homem está no ato, no agir do estar-sendo, no próprio existir e não em uma idealidade que quando alcançada doará ao seu “apanhador” a dádiva da vida, a felicidade.
Como já mencionamos em outro texto, a sua narrativa se configura por uma escrita em rede que avança além das fronteiras de cada livro. O professor e crítico argentino Roberto Ferro postula a possibilidade de ler a literatura onettiana como um texto único, distinguindo continuidades e descontinuidades a partir das relações entre eles, os textos. Quem teve a oportunidade de ler A vida breve ou Junta-cadáveres, reconhecerá, nos contos, espaços e personagens. Destacadamente, a cidade de Santa María, importante cenário da literatura de Juan Carlos Onetti, como sua praça, o bar Berna etc. Entre as personagens, podemos fazer várias relações e constatações. No conto Presencia, lemos a respeito de Jorge Malabia, agora mais velho e não mais em Santa María cidade onde, em Junta-cadáveres, protagoniza junto a outras personagens, como Díaz Grey, Marcos Bergner, Julita, o velho Lanza, Barthè, a história que gira em torno da instalação de um prostíbulo por Larsen, o Junta-cadáveres, em Santa María.
Malabia, em Presencia, vive em Madrid às custas do dinheiro que lhe chega, da venda forçada, do jornal El liberal de seu pai. Ali, exilado, vive como se estivesse em Santa María. Convive com o sentimento de saudade por uma mulher que se chama María José Lemos, e esse sentimento o faz investir na sua procura, porém, ele a reencontra apenas nos relatos do detetive contratado. Como remédio para o esquecimento, os relatos do detetive lhe devolvem outra história de María José e assim ele pode esquecê-la. No entanto, meses depois, Malabia lê em El liberal uma nota sobre o desaparecimento de María José. A história faz o leitor repetir-se histórias das ditaduras da Latino-américa, María José Lemos é mais uma desaparecida.
Em A casa na areia, uma vez mais a questão do tempo e das suas relações com o existir se fazem presentes. Nesse conto o conhecido médico da narrativa onettiana, Díaz Grey, em seu ter tempo, no tédio cotidiano conferido no bar do hotel ou em seu consultório, constata, segundo o narrador, que sua vida não passa de lembranças. Lembranças que se lançam em um sentido por vezes falsificado, elas, as lembranças, podem ser evocadas e corrigidas para serem sustentadas com imprevistas invenções. Díaz Grey, como numa aventura proustiana, pergunta-se sobre uma espécie de circularidade do tempo, vê que o futuro é uma denominação para a sombra de um passado. O começo anuncia o fim. Nessa sorte de lembrança a que se confere um sentido variado, o leitor, cativo de Onetti, poderá incorrer a associações e reinvenções cruzadas da literatura onettiana. O conto, publicado no jornal La nación de Buenos Aires em 1949, pressagia e “anuncia” o que vai acontecer no romance Deixemos falar o vento (Dejemos hablar al viento), publicado originalmente em 1979.  Nesse conto Díaz Grey conhece Colorado, um piromaníaco, há nele, no conto, uma lenda de um anel enterrado. Não é difícil que o leitor faça relações metatextuais e associe a lenda do anel, o piromaníaco, o incêndio de Santa María (que ocorre em Deixemos falar o vento), a presença de uma personagem/testemunha (que aparece como num frame cinematográfico no romance O estaleiro, no qual é um frentista de posto de gasolina, ou seja, um fornecedor de material inflamável) chamado Hagen a uma tetralogia de Wagner, a saber: “O anel de Nibelungos [Der Ring des Nibelungen]”. Nessa tetralogia há a ópera “O Crepúsculo dos deuses [Götterdämmerung]”, em que Hagen incendeia Walhalla que fica à beira de um rio e, como a Santa María onettiana, também é incendiada.
Em Sabonete, lemos uma pequena história de amor e respeito, em que o ignorar contém a potência do amar sem a intolerância da razão.
Temos então, 47 contos, que reunidos dão a vislumbrar grande parte da tessitura de uma trama em que, sua pessoalidade, a de uma certa literatura autoral que contém cada conto, dá a ler e se completa, numa certa incompletude, ou seja, na intimidade com aquilo que lhe é estranho, ou melhor, naquilo que lhe é próprio mas está ausente de uma presença. Na pessoalidade impessoal em que a Sua literatura, a de Onetti, passa a ser somente literatura, pois Seu sentido, o da literatura, se dá pelo exterior-a-Si, num fluxo vital de nunca ser, determinante e, cadavericamente, uma obra, um autor, uma identidade fixa. Mas, uma linha de fuga que transvaza toda e qualquer determinação; inclusive a da temporalização do tempo.
MOLINA, Antônio Munõz. "Sonhos Realizados: Um convite aos contos de Juan Carlos Onetti".In.: 47 contos de Juan Carlos Onetti.Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ONETTI, Juan Carlos. 47 contos de Juan Carlos Onetti.Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
__________. El pozo. Montevideo: Arca, 1965.

publicado em REA - Revista Espaço Acadêmico Nº 80 - janeiro/2008 - ISSN 1519.6186 

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