quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Dissociação e anacronismo no coração do tempo presente

Contemporâneos são aqueles que não aderem completamente ao seu tempo, segundo o que nos indica o filósofo Giorgio Agamben. De chofre, essa afirmação nos remete a noção de pertencimento que sugere, mais do que outra coisa, uma dinâmica de indeterminação e, consequentemente, de desadequação. Desde aí, poderíamos então arriscar a compreensão de que isso seria algo como estarmos próximos, simultânea e indistintamente, do que nos dista muitos séculos e do que nos é recentíssimo. Sendo assim, o nosso tempo presente, que é a contemporaneidade, exigiria um modo de “atualidade” descontinuada ou deslocada. Em virtude disso, pertencer ao tempo presente, sendo-lhe exatamente contemporâneo, significaria não coincidir completamente com este e tampouco adequar-se as suas pretensões, de sorte que se possa assegurar, a cada vez, uma tomada de distância. Mas, afinal, como dispor de uma não-coincidência com as pretensões do próprio tempo? E, nesse sentido, quando nos constituímos efetivamente em um estado de contemporaneidade? Obviamente, não se trata aqui de alguma nostalgia por outro tempo, e sim do reconhecimento da irrevogabilidade de seu presente. Nesse caso, com Agamben, já podemos entrever a contemporaneidade como uma singular relação com o presente de nosso próprio tempo, na qual só aderirmos de fato a ele pela distância dinâmica de uma dissociação e de um anacronismo. Ademais, o autor acresce uma noção de obscuridade que, não possuindo o sentido de uma não-visão mas de uma espécie de visão que denominamos escuro, permite-nos perceber as trevas do tempo presente. Pois bem, o que podemos constatar até aqui, seguindo a reflexão de Agamben, é o fato de que a contemporaneidade não se resolve apenas em um tempo cronológico. Diferentemente disso, no coração do tempo cronológico da contemporaneidade urge uma intempestividade, uma obscuridade, uma dissociação e um anacronismo que impedem o tempo de compor-se determinada e adequadamente. Assim, nós, quando contemporâneos, somos aqueles que, mediante essa singular relação, marcamos tal ruptura no nosso tempo presente, fazendo-o descontinuar em permanências e obscurecer em deslocamentos sempre ainda não-vividos dentro de todo vivido.

por Letícia Testa / Publicado no Suplemento Feedbr100% - Edição Nº4, Outubro de 2010, Açores PT.

http://feedbr100.blogspot.com/2010/09/coordenadora-feedbr100-cristina.html

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