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Máximo Daniel Lamela Adó
La dança bruja de las horas, ah que dança, señor, señorito, sin el alma del cururu, del cateretê, añaretãmeguá, la dança en la sombra, el error sin dirección de lo lúgubre, de las mariposas ô de la lluvia en los inviernos de mi niñez cativa de la lama, del polvo ô de las calles húmedas y de los pueblos sin suerte ni destino. Casa antígua. Mi tava, mi tavaiguá1.
(Wilson Bueno, Mar paraguayo)
Todo texto nasce de uma interrupção. Isto é, de atrapalhar o pensamento e dar versão a seu movimento. Neste caso escolho um texto literário para com ele versar a respeito da dança e dançar; uma literatura. Parto da literatura, nisso escolho um trecho de Mar paraguayo2 de Wilson Bueno, como propósito para pensar a dança em um antes da dança. A dança subtraída de uma regra do dançar; de uma obediência normativa. Pensar a dança em sua “aldeia natal [tavaiguá]”; e nesse lugar, transfigurado, estar.
Deixar-se estar na dança como gesto infinito, num revelar-se, sempre e insistentemente, como surpresa e novidade.
Em Mar paraguayo Wilson Bueno nos apresenta uma literatura que transfigura o lugar da língua. E traz a esse lugar, transfigurado ao certo, um lugar pouso, num sem repouso, mas, com afeto retido. Um afeto de casa. Porém, sem fixar morada abre-se na dimensão de um exílio permanente, e assim o lar se faz na existência do existente na sonoridade afetuosa do não prender-se às regras ditas; mas estar nelas sem nelas ou delas morrer.
Valer-se da conjuntura, nesse caso da conjuntura da regra da fala e da escrita, para dizer a seu modo; lugar, tempo, espaço, idioma; o que pode - não-pode - ser dito. Dizer, na escrita, como no dizer de casa, na fala errada, confusa e misturada da infância, espaço/tempo que ainda se permite transvazar a regra - ou na ordem do entrecruzar de culturas e idiomas - que permite esgarçar fronteiras no atravessamento de linguagens e identidades. Na fala errada errar com a fala. Impor errância à verdade.
A marafona de Wilson Bueno narra: “[…] sei que escribo y esto es como grafar impresso todo el contorno de uno cuerpo vivo en el mundo de la calle central. No hay que tener nada além del silêncio”. (BUENO, p.33)
O silêncio aqui, não é apenas ausência de som ou presença de vazio auditivo; o silêncio é o nada que há que se ter. Lembremos que para Heidegger o nada é uma falta que tudo engloba, é a presença de uma ausência; a presença de um vazio que não se deixa constatar como alguma coisa que se mostre na forma de algo pronto e acabado, mas que se da a conhecer enquanto recusa.
Em Ser e Tempo Heidegger privilegia a tonalidade afetiva da angústia como manifestação do nada. A angústia, como manifestação do nada, caracteriza o existente, neste caso o homem enquanto Dasein, como aquele que, tomado pela não referencialidade, adentra na possibilidade de potencializar um gesto infinito que permita a compreensão contínua do existente como existência; e é na existencialidade da existência, pelo existir concreto e imediato que somos, na indeterminação pela falta de referencialidade, que encontramo-nos no bojo da exigente aventura vital. Aqui e ali, na imersão assumida de que existir é estar estranho. Entendendo então que o estranhamento e o assombro no mundo e com o mundo pode ser um modo de referir-se ao que vem a ser isso que chamamos vida.
A narrativa de Mar paraguayo, em um silêncio de muito falar, de fala entrecruzada de idiomas (português, espanhol, guarani entre algumas palavras em francês) transfigura o espaço da leitura cômoda - que é leitura em nosso idioma ou num idioma conhecido - para dar vazão à leitura de um idioma próprio, o idioma da personagem narrador. Deste modo libera a escrita de uma regra sistematizada e oficial. Num, nem um nem outro - nem português nem espanhol ou guarani – mas, em variados outros: como linguagens, sentidos e realidades ou ainda como afirma Perlongher3: na miscelânea aberrante e errática de varias línguas, se faz a mistura. Essa mistura permite como bem afirmou Pablo Gasparini4: uma leitura silenciosa que driblará por sua própria natureza os conflitos da oralidade.
Oferecendo-se como intraduzível, a leitura de Mar paraguayo é perfeitamente reconhecível aos leitores do português como do espanhol5. Sem repouso nos oferece um pouso errante ou, em uma verdade como errância6, nos permite vivenciar, pela experiência lida, a constante transformação de uma verdade unívoca, final e estável para a concepção de uma verdade não tão estável, em que o sucesso da linguagem, seja ela verbal ou não-verbal, se desestabiliza. Uma vez que o significante não se apresenta ancorado a um significado, sem implicar na estabilidade do preenchimento significativo do símbolo e sim na arbitrariedade e não-repouso do signo.
Entendo que a dança pode ser lida como linguagem em uma reciprocidade entre palavra e movimento, no qual uma fisicalidade real se defronta com um sistema de signos abstratos. E no falar de linguagem dança e literatura podem cruzar-se, por exemplo, na instância em que, como em Mar paraguayo, a noção de correspondência se ausenta, na acepção na qual o movimento, seja ele de palavra ou corpo, de corpo/corpus, acarreta na instável, imbricada e complexa construção, permanente, de sentido. E nessa construção de sentido a verdade não está amarrada a uma certeza denotativa, ou seja, não indica uma certeza através de sinais, assim como a palavra ave indica todo animal com penas, mas designa uma série de atributos para além de um vínculo direto e imediato instaurando um espaço interpretativo, isto é, de ordem conotativa. Como diz Fernandes7 a respeito da dança-teatro de Pina Bausch, e aproveito aqui para contrastar à escrita literária de Wilson Bueno em Mar paraguayo: “Conteúdos e significados são constantemente descartados e desafiados, ao invés de expressados pela forma repetitiva” (38: 2007).
Destarte o corpo, no caso da dança, e o corpus, no caso da literatura são auto-questionadores, uma vez que descartam e desafiam conteúdos e significados prontos para invocar no próprio movimento de seu existir a pergunta - imbuída de permanente redefinição - sobre si. A fisicalidade e a grafia redefinem a sua linguagem no ato mesmo em que se apresentam em presença, posto que é em função daquilo que são em presença, que se compreendem e podem reivindicar uma nova compreensão numa permanente redefinição ao perceber-se o que são; sendo.
Uma linguagem que, por auto-questionadora, se redefine, paradoxalmente, como linguagem e não-linguagem constantemente.
Eis que assim, o gesto da dança e igualmente o da literatura abre no espaço, seja o solo ou a folha, a dimensão do infinito. A literatura e a dança transportam a potencialidade de abrir, num espaço limitado, a dimensão do vazio, do nada, do silêncio.
***
O gesto da dança e o do fazer literário, anotam com o corpo à construção de um corpus do infinito pelo finito, no desejo, quem sabe ingênuo, de apreender com o gesto a acontecência do existir. O gesto textual se torna dança e a dança, por vezes, se deseja como texto. literaturadança. dançaliteratura.
Indeterminar o gesto; dança, é deixar que o gesto seja dança antes que a dança tenha que servir ao gesto. Assim o gesto textual, transvaza dançaliteratura.
Referências:
BUENO, Wilson. Mar paraguayo. São Paulo. Iluminuras, 1992.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wupertal Dança-Teatro: Repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007.
GASPARINI, Pablo. Hacia la subversión geográfica: Mar Paraguayo de Wilson Bueno. Disponivel em: < www.lle.cce.ufsc.br/congresso/trabalhos_literatura_hispanoamericana/Pablo%20Gasparini.doc > acesso em: 05/02/2007, 2007.
PERLONGHER, Néstor. Sopa Paraguaya. In: Mar Paraguayo. BUENO, Wilson. São Paulo. Iluminuras, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade in: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973.
1 Utilizo-me do “elucidário” de Wilson Bueno para traduzir as palavras citadas em guarani. Cururu e cateretê: dança religiosa dos primeiros guaranis. Añaretãmeguá: infernal; coisa infernal. Tava: Aldeia. Tavaiguá: Aldeia natal.
2 Agradeço a leitura de Mar Paraguayo a Manoel Ricardo de Lima que, em sua habitual gentileza, apresentou-me os escritos de Wilson Bueno após ter notícias do projeto “marafona: força criadora do desaparecimento”.
3 PERLONGHER, Néstor. Sopa Paraguaya. In: Mar Paraguayo. BUENO, Wilson. São Paulo. Iluminuras, 1992. p.
4 GASPARINI, Pablo. Hacia la subversión geográfica: Mar Paraguayo de Wilson Bueno. Disponivel em: < www.lle.cce.ufsc.br/congresso/trabalhos_literatura_hispanoamericana/Pablo%20Gasparini.doc > acesso em: 05/02/2007, 2007
5 Tanto no Brasil que é editado pela Iluminuras como na Argentina que é editado pela Intemperie, não sofreu traduções. Ambos os textos são idênticos.
6 A idéia de “verdade como errância” está relacionada com a leitura, entre outras, de: HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade in: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1973.
7 FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wupertal Dança-Teatro: Repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007.
PUBLICADO EM:
PUBLICADO EM:
Marafona : força criadora do desaparecimento.
Organizado por Máximo Daniel Lamela Adó, Letícia Testa, Nazareno Eduardo de Almeida.
Florianópolis : Núcleo de Ação Integrada - NAI, 2007.
123 p. . (Série dança e arte, tradução intersemiótica)
ISBN: 978-85-60893-00-3
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